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Liberdade religiosa?


Por: Érica Araújo e Castro – Articulista Jornal Estadoatual
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Em nossa Carta Magna (NOTA) vemos que a liberdade religiosa – seja ela de qual vertente for – é garantida com todas as letras e sem a menor sombra de dúvidas. Então, católicos, adventistas do sétimo dia, testemunhas de Jeová, umbandistas, candomblecistas, adeptos da Igreja Universal, da Deus é amor, do Budismo, do Confucionismo – todos, sem exceção, podem manter seus templos religiosos/filosóficos, exercer preceitos de sua fé livremente no Brasil. Podem, inclusive, em razão dela, serem dispensados de deveres cívicos, desde que cumpram alternativa legal permitida por sua consciência.

Mas o que isto significa de maneira prática?

Significa que testemunhas de Jeová possuem o direito legal de bater à porta de sua casa para evangelizar – assim como você tem o direito de se recusar a ouvir. Significa que candomblecistas podem fazer seus despachos em encruzilhadas, levando agradecimentos e pedidos aos Senhores Exus, sem serem interrompidos ou impedidos. Significa que umbandistas podem promover suas giras nos terreiros, com seus atabaques e cantos durante a quaresma, se assim o desejarem – mesmo que você católico considere um baita desrespeito. Significa que não se podem invadir igrejas católicas e depredar seus santos – mas, ao mesmo tempo, se você mudou de religião e agora professa alguma que se posicione contra imagens e deseja destruir as que lhe pertencem, você também pode fazê-lo. O bom senso reza que você o fará discretamente, sem ofender a fé alheia – porém, bom senso não é preceito legal e nem algo que todos podem dizer que possuem.

Considerando-se então a Constituição, podemos crer que vivemos em um paraíso da diversidade religiosa em que todos são respeitados, certo?

Errado!

Especialmente se se considerarem os cultos de matiz africana (Candomblé, Umbanda, Catimbó da Jurema, Tambor de Minas etc).

Exemplifico: “Chuta que é macumba!” – é ditado popular que demonstra o desrespeito e desconhecimento pela fé do outro. A expressão é até chiste, de tão comum, e significa que o referido objeto ou pessoa é totalmente indesejável. A frase por si só é desrespeito porque o despacho é um artigo religioso, contém a fé de seu depositante. Assim do mesmo jeito que um católico não gosta de ver seus santos chutados na TV pelo que eles representam para sua fé (mesmo que não tenham sido retirados de igreja alguma), um candomblecista sentir-se-á ultrajado se seu para o santo for desfeito.

A frase ainda mostra desconhecimento porque macumba nada mais é que um instrumento musical de percussão semelhante ao reco-reco – as oferendas possuem nome próprio, como já mencionado.

Porém, mesmo que exijam respeito para si e seus cultos religiosos, as pessoas não enxergam o desrespeito quando a atingida não é a sua fé – e aí o “chuta que é macumba” traz em si todo um contexto de intolerância quando sua mera menção não é reconhecida como uma afronta. A santa católica não se chuta – mas a entrega na encruzilhada/ cachoeira/ pedreira/ etc, sim.

E não há como negar: o comportamento desrespeitoso é incentivado pelo fanatismo religioso que, a despeito das leis brasileiras que abraçam a tolerância, tem grassado em nosso meio.

Recentemente, a Igreja Universal do Reino de Deus desenvolveu um braço evangelizador chamado de Gladiadores da Fé. Poder-se-ia discutir muito a respeito da legitimidade destes, partindo inclusive, de seu nome que eu julgaria inapropriado. Gladiadores entraram para a História como escravos que lutavam até a morte para entreter os romanos. Também matavam cristãos, segundo se afirma.

Então, eu consideraria inapropriado. Mas aí que está: quem sou EU para julgar o nome certo ou errado? Por acaso sou desta religião para querer dizer o que é um nome apropriado para determinado ramo a ser abraçado pelos adeptos dela?

E quanto a ter um braço de proselitismo composto de jovens dispostos a fazer conversões e a serem o exemplo da aplicação dos preceitos desta religião em suas vidas funcionando como força evangelizadora?

Nada contra também. Nem se pode dizer que é novidade – lembremo-nos dos jesuítas, soldados da fé católica que, com poucas modificações, possuíam exatamente esta função.

Mas então, qual o problema?

Com os Gladiadores da Fé? Nada. Desde que eles, como as Testemunhas de Jeová ou Mórmons (como são popularmente conhecidos os adeptos da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias) façam sua evangelização pacificamente, a quem tem disposição de ouvir.

Porque se seguirem seus similares históricos, os jesuítas, aí sim, o problema começará porque eles exemplificam um comportamento que fere a maior lei de nosso país – porque para os soldados da fé católica lá no tempo passado, não havia vontade ou fé que impedisse a proliferação da igreja de Roma. Mesmo à força.

Esta lógica já não se aplica aqui, no tempo presente. Mas é exatamente aí que reside meu medo porque apesar de nossa lei que garante direitos de exercício de fé bem condizentes com a multiplicidade de crença de nosso país, vemos relatos e mais relatos de pastores de religiões neopentecostais pregando a intolerância religiosa. E intolerância mesmo. Do tipo que leva pode levar os fiéis à agressão.

Como se pelo fato de uma verdade religiosa caber em minha mão como uma luva, vá significar que ela terá que OBRIGATORIAMENTE caber em sua mão também – ou você será o alvo do meu desprezo e do meu ódio.

Ódio. Não amor, não compaixão. Ódio.

O perigo reside exatamente quando as pessoas esquecem-se da pessoa que dizem seguir – um certo Jesus Cristo, que segundo se relata, comia com cobradores de impostos e apenas compartilhava as verdades de sua nova religião no templo ou para aqueles que se aproximassem dele com o intuito de ouvir. Ou seja, respeitando o livre arbítrio, o Cristo não esfregava a sua verdade na cara dos outros. Mesmo que ele achasse que tinha razão.

Ao contrário dos fariseus, cuja crença fanática, pronta a estender dedos em riste, a apedrejar, a crucificar, foi muitas vezes apontada por aquele mesmo homem como inapropriada. E é justamente esta crença fanática que vemos aí expressada em programas de televisão de cunho religioso. Esse fanatismo tão característico de braços religiosos que deixam de ser evangelizadores, negando a Cristo, porque apenas despertam rejeição e param de agregar. Passam a ser então braços dogmatizadores, julgadores do outro, doutrinadores de fanáticos.

Os resultados? São crescentes os relatos de religiosos, especialmente os de religiões de matiz africana, que são agredidos ou até mesmo mortos por adeptos de religiões neopentecostais intolerantes. Vide os casos de assassinatos de pais de santo, pipocando desde 2011. Isto, sem contar as agressões físicas. Em morros do Rio de Janeiro, traficantes neopentecostais invadem centros espíritas e terreiros promovendo um quebra-quebra de santos e pessoas.

Mas não precisamos ir tão longe. Em uma cidade próxima a Lafaiete, por exemplo, uma fiel umbandista fazia uma entrega em uma encruzilhada quando foi abordada por um casal de neopentecostais, portando um machado, que tentaram impedi-la de fazê-lo. Mesmo que ela estivesse em via pública. Mesmo que o exercício da religião seja garantido pela Constituição.

O caso precisou da intervenção da polícia, que, acertadamente garantiu a liberdade de culto da senhora que deixava na “encruza” seu presente para a entidade espiritual.

Ou seja, mesmo com garantias legais, ainda hoje é necessária a presença da autoridade policial para garantir que cidadãos exerçam sua religiosidade em paz.
E é aí que ramos como os Gladiadores da Fé causam-me preocupação. Em um ambiente religioso não apenas fervilhante, mas que se tem mais e mais mostrado como um caldeirão de óleo fervente prestes a queimar quem dele se aproxime, surge um destacamento com ares de milícia, marchando pela palavra, pela fé.

Mas aí é que está: marcham para si ou sobre o outro? Agirão pacificamente ou não? E se começarem pacíficos, manter-se-ão assim até quando? Lembremo-nos das implicações do próprio nome Gladiadores – escravos e assassinos.

Podemos mesmo confiar que agirão em nome da paz e do respeito, divulgando sua própria fé, mas não através da destruição da fé alheia? Ou, mesmo que a organização tenha as boas intenções da divulgação do evangelho, pode-se confiar que a dogmatização neste formato não levará indivíduos fanáticos a agirem com violência?

O fato é que organizações que congregam religiões de matiz africana acataram a iniciativa da Casa de Oshumaré, templo candomblecista centenário, histórico e para protegerem-se registraram há algumas semanas denúncia no Ministério Público Federal em várias cidades do Brasil afora.

Decidiram agir em vez de reagir. E deram o grito adiantado, antes da facada, como a que matou o Pai de Santo Rafael da Silva Medeiros.

Há quem diga que eles se precipitaram – mas frente ao panorama de intolerância que está se desenhando em nosso país, como se não fôssemos nós fruto de um grande cadinho religioso, eu respondo com um adágio em contraposição ao “chuta que é macumba”. Adágio este que realmente expressa a sabedoria popular capaz de prevenir catástrofes. Adágio este que manifesta o desejo de toda uma população racional contra o furor fanático (sem classificar a todos os neopentecostais como tal – porque tal classificação leviana seria também uma prova de fanatismo de quem a faz).

E o adágio é “antes prevenir do que remediar” – ou seja, antes preventivamente, frente à menor desconfiança de que se vai ser alvo de intolerância/violência, pedir investigação à autoridade competente, do que consolar famílias de filhos de fé mortos pela fúria religiosa anticristã.

NOTA:
1. Constituição Federal, artigo quinto e parágrafos subsequentes que rezam sobre a liberdade religiosa.
Constituição: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
VII – é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva;
VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;

2. Vejam que eu evitei a todo custo o uso da palavra “evangélicos” – tal massificação de crenças me é indigesta. Cada denominação religiosa possui os seus preceitos – assim, um adventista não exercerá sua crença da mesma maneira que um adepto da universal, ou da Deus é Amor, ou da Assembleia de Deus. Todas são diferentes possuindo apenas o núcleo comum dos preceitos evangélicos. Porém, se “evangélico” é quem segue o evangelho de Cristo, além dos neopentecostais, católicos, espíritas e umbandistas também são, porque também o fazem, daí meu repúdio a um termo generalizador e pouco descritivo em um país com tantas formas de fé cristã, expressa de maneiras tão diversas.

Link original: http://www.estadoatual.com.br/sociedade/125-opniao/1186-artigo-liberdade-religiosa.html